Andrée Geulen: A Heroína Belga que Salvou Crianças do Holocausto
Andrée
Geulen-Herscovici (1921–2022) foi uma professora belga e membro da resistência
durante a ocupação nazista da Bélgica na Segunda Guerra Mundial. Sua coragem e
dedicação salvaram centenas de crianças judias da deportação e do extermínio,
arriscando a própria vida para protegê-las.
Como
integrante do Comitê de Defesa dos Judeus (CDJ), ela desempenhou um papel
crucial na organização e proteção de “crianças escondidas” durante o
Holocausto, garantindo que fossem acolhidas por famílias, escolas e instituições
religiosas sob identidades falsas.
Após a
guerra, Geulen continuou seu legado de solidariedade, engajando-se em causas
humanitárias e na reunificação de famílias judias. Reconhecida como justa entre
as Nações pelo Yad Vashem, ela deixou um impacto duradouro na Bélgica e em
Israel.
Infância e Contexto Inicial
Andrée
Geulen nasceu em 6 de setembro de 1921, em Schaerbeek, um subúrbio de Bruxelas,
em uma família liberal da burguesia urbana belga. Criada em um ambiente de
valores humanistas, ela formou-se professora e, após a invasão alemã da Bélgica
em maio de 1940, começou a lecionar em uma escola primária no centro de
Bruxelas, em 1942.
A
ocupação nazista trouxe mudanças drásticas ao país, com a implementação de
políticas antissemitas que marginalizaram e perseguiram a comunidade judaica,
composta por cerca de 66.000 pessoas na Bélgica, muitas das quais eram
imigrantes ou refugiados de países vizinhos.
Foi no
ambiente escolar que Geulen testemunhou os primeiros sinais da perseguição. Em
1942, os nazistas impuseram o uso obrigatório da estrela amarela para
identificar judeus em público, uma medida que afetou diretamente seus alunos.
A visão
de crianças forçadas a usar o distintivo e a crescente violência contra
famílias judias chocaram Geulen, despertando sua determinação em agir contra a
injustiça.
Envolvimento com a Resistência
Em
1943, por meio de uma colega professora, Ida Sterno, Geulen foi apresentada ao
Comitê de Defesa dos Judeus (CDJ), uma organização clandestina fundada em 1942
por membros da comunidade judaica e não judaica para combater a perseguição
nazista.
O CDJ
era uma rede sofisticada que incluía judeus, católicos, socialistas e outros
grupos dispostos a resistir. Como uma das poucas não judias no grupo, Geulen
trouxe uma perspectiva única, usando sua posição de professora e sua aparência
não judaica para atuar sem levantar suspeitas.
Sua
principal missão no CDJ era contatar famílias judias em Bruxelas e convencê-las
a entregar seus filhos para serem escondidos. Esse era um processo emocionalmente
delicado, pois muitas famílias hesitavam em se separar de seus filhos, temendo
nunca mais vê-los.
Geulen,
com empatia e determinação, explicava a gravidade da situação e organizava a
transferência das crianças para lares seguros, como famílias católicas,
internatos e mosteiros, onde recebiam identidades falsas.
Ela foi
responsável por salvar cerca de 300 crianças, acompanhando-as pessoalmente e
garantindo sua segurança. Geulen também lecionava e residia no Athénée Royal
Isabelle Gatti de Gamond, um internato em Woluwe-Saint-Pierre, dirigido por
Odile Ovart-Henri, que abrigava 12 crianças judias sob disfarce.
Em maio
de 1943, durante o feriado de Pentecostes, a escola foi invadida pelas
autoridades nazistas. Algumas crianças foram detidas, e Odile Ovart-Henri e seu
marido, Remy, foram deportados para campos de concentração, onde morreram.
Geulen,
interrogada durante a operação, conseguiu escapar e alertar outras crianças que
estavam fora da escola. Esse episódio marcou um ponto de virada em sua
trajetória, forçando-a a adotar uma identidade falsa, Claude Fournier, e a
viver na clandestinidade com Ida Sterno.
Em maio
de 1944, Sterno foi capturada pelos nazistas, mas Geulen continuou seu trabalho
até a libertação de Bruxelas, em setembro de 1944. Durante esse período, ela
enfrentou riscos constantes, como a possibilidade de ser denunciada ou
capturada, mas sua determinação em salvar vidas nunca vacilou.
Desafios e Estratégias da Resistência
O
trabalho de Geulen exigia não apenas coragem, mas também uma logística
complexa. O CDJ mantinha registros codificados das crianças escondidas,
garantindo que suas verdadeiras identidades fossem preservadas para possíveis
reuniões familiares após a guerra.
Geulen
memorizava muitos desses detalhes para evitar que documentos caíssem em mãos
erradas. Além disso, ela coordenava com famílias adotivas e instituições
religiosas, muitas das quais aceitavam as crianças por solidariedade, mas
também enfrentavam riscos significativos caso fossem descobertas.
A
resistência belga, incluindo o CDJ, operava em um contexto de vigilância
constante. A Bélgica, sob ocupação, era patrulhada pela Gestapo e por
colaboradores locais, o que tornava cada movimento da resistência um ato de
extremo perigo.
Apesar
disso, a rede de Geulen e seus colegas conseguiu salvar cerca de 4.000 crianças
judias em todo o país, um feito notável em um período de tamanha adversidade.
Vida Pós-Guerra e Legado
Após a
libertação, Geulen dedicou-se a reunir as crianças escondidas com suas famílias
sobreviventes, uma tarefa muitas vezes dolorosa, já que grande parte dos pais
havia sido deportada e assassinada em campos como Auschwitz.
Ela
também se envolveu com a organização Ajuda às Vítimas Israelitas da Guerra, que
apoiava sobreviventes dos campos de concentração na reconstrução de suas vidas.
Em
1948, Geulen casou-se com Charles Herscovici, um sobrevivente judeu de origem
cigana que havia passado por campos de concentração. Juntos, eles construíram
uma vida dedicada ao ativismo pacifista e antirracista, refletindo os valores
que guiaram suas ações durante a guerra.
Geulen
manteve laços próximos com muitas das crianças que salvou, algumas das quais a
consideravam uma figura materna. Em 1989, o Yad Vashem reconheceu Geulen como
Justa entre as Nações, uma honra reservada àqueles que arriscaram suas vidas
para salvar judeus durante o Holocausto.
Em
2007, ela recebeu a cidadania honorária de Israel durante a Conferência
Internacional “Crianças Escondidas na Bélgica durante a Shoah”. Ao aceitar a
homenagem, Geulen declarou com humildade: “O que fiz foi apenas meu dever.
Desobedecer às leis da época era apenas a coisa normal a se fazer.”
Seu
centésimo aniversário, em 6 de setembro de 2021, foi amplamente noticiado na
Bélgica, e uma creche em Bruxelas foi renomeada em sua homenagem, um tributo à
sua coragem e legado. Geulen faleceu em 31 de maio de 2022, em Ixelles, aos 100
anos, deixando um exemplo inspirador de altruísmo e resistência.
Impacto e Relevância
A
história de Andrée Geulen é um testemunho do poder da ação individual frente à
injustiça. Em um momento em que a indiferença ou o medo poderiam ter
prevalecido, ela escolheu arriscar tudo para proteger os mais vulneráveis.
Seu
trabalho no CDJ, ao lado de outros heróis da resistência belga, contribuiu para
salvar milhares de vidas e preservar a memória de uma comunidade devastada pelo
Holocausto. Além disso, sua humildade ao descrever suas ações como “dever”
reflete a profundidade de sua convicção moral.
Hoje,
Geulen é lembrada não apenas como uma salvadora, mas como um símbolo de
esperança e solidariedade. Sua vida nos lembra que, mesmo em tempos de
escuridão, a coragem e a empatia podem fazer uma diferença duradoura.
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